Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades

Alguns dos que mais lutaram pelo Portinho são agora o seu carrasco. O projeto já vem do tempo do PSD, criticado na altura, foi agora acolhido pelos atuais edis do JPP. A postura crítica deu lugar a decisões irresponsáveis, que copiam as políticas que antes criticavam, revelando a sua desorientação ideológica.

O recente mediatismo criado em volta do empreendimento do Portinho, trouxe-me à memória vivências de quando assentei arraiais na Madeira. As memórias trazidas ao presente induzem a uma reflexão mais profunda, processo que prioriza a certeza da importância da coerência das nossas ideias na condução das nossas vidas como o contributo para a construção de uma sociedade livre e mais justa.

O caso do Portinho e a “requalificação” da praia dos Reis Magos vem dar razão ao ditado popular “Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades”. Ironicamente, ou talvez não, alguns dos que mais lutaram pelo Portinho são agora o seu carrasco.

Se bem me lembro, e já passaram cerca de 18 anos, tinha acabado de chegar à ilha quando visitei a praia do Portinho (e talvez única vez!). Esta intervenção foi organizada pela ARCHAIS - Associação de Arqueologia e Defesa do Património da Madeira, da qual me tornara sócio e ativista, à altura presidida pelo atual Secretário Geral do partido Juntos Pelo Povo (JPP). A ARCHAIS assumia-se desde a sua fundação (1998) como uma associação de defesa dos valores relacionados com o património, e a fomentar a cidadania interventiva, valores e ação que comungava e ainda comungo, contrariamente a outros.

A visita ao Portinho, revestiu-se numa ação de sensibilização de defesa do património cultural, uma vez que neste espaço, à muito abandonado e pouco frequentado, estavam presentes vestígios de ruínas de um engenho e de um estaleiro de reparação naval. Enquadrou-se também pela defesa do património natural legitimado pela singularidade do cone vulcânico da Atalaia e arribas circundantes.

Foi principalmente um alerta que visava a defesa do espaço público, já que, ao tempo, existia a intenção de ocupação deste espaço por privados. O projeto de ocupação já vem do tempo da gestão da Câmara Municipal de Santa Cruz (CMSC) pelo PSD, e que, criticado na altura, foi agora, lamentavelmente, acolhido pelos atuais inquilinos da câmara, o partido JPP.

Recordo as dificuldades de acesso ao local, sendo o único acesso uma vereda em muito mau estado, em particular a beleza singular daquela área e a irredutível certeza de todos os ativistas da ARCHAIS que a orla costeira deveria ser usufruída por todos. Afinal as certezas eram só de alguns. Os recentes episódios relacionados com o Portinho mostram que nem todos, os que há 18 anos caminharam na sua defesa seriam firmes nos princípios e na defesa dos valores coletivos. Coincidência, ou não, seria com elementos ligados à mesma que surgiu o JPP.

No presente, a CMSC e o Governo Regional (GR) em parceria aprontam-se para deixar construir um hotel resort de cinco estrelas na praia do Portinho e o prolongamento da promenade dos Reis Magos.

Os madeirenses têm permitido que o domínio público marítimo seja ocupado por privados, que o espaço de todos seja alienado a privados, patrocinado por quem gere os bens públicos e tem a obrigação de defender os bens públicos, em desfavor dos interesses coletivos da maioria da população e para satisfação de interesses financeiros particulares. Acrescente-se que este tipo de construções na costa tem contribuído para pôr em causa a segurança de pessoas e bens e a sustentabilidade do turismo madeirense.

Este consórcio da CMSC e GR é um exemplo, a juntar aos inúmeros atentados ao património coletivo na nossa terra, sustentado no facto da Madeira ser a única região do país sem um Plano de Ordenamento da Orla Costeira (POOC), e, no caso do Portinho, por vontade política da CMSC e a conivência do GR, levou à recente suspensão do Plano Diretor Municipal de Santa Cruz (PDM).

Porque o ordenamento do território e a preservação do litoral são de especial vantagem para toda a comunidade, e quando são públicas as envelhecidas (o)posições políticas nestas matérias por parte dos edis e dirigentes do JPP em relação ao GR, é incompreensível e lamentável a sua atuação ao desvalorizar o impacto paisagístico, os constrangimentos da acessibilidade da população madeirense ao mar e a descaracterização da orla costeira pelo betão.

A postura crítica relativa à ocupação selvagem do domínio público marítimo deu lugar a decisões irresponsáveis, copiando a papel químico as mesmas políticas daqueles que tanto criticavam, reveladora da sua (deso)orientação ideológica.

Não compreendemos que defenda a concessão da orla costeira a privados e apoie a sua artificialização, com a construção da promenade que ligará o Portinho aos Reis Magos, a “requalificação” da promenade dos Reis Magos e a construção da “piscina natural”, quando o mar tem destruído este tipo de infraestruturas costeiras.

O executivo JPP e os promotores afirmam que o hotel valoriza a praia e privilegia o acesso dos madeirenses à frente mar, não será mais que uma nesga. A promenade facilitará a acessibilidade à praia, mas a prazo pois o mar levá-la-á, certamente.

Os supostos benefícios desta unidade hoteleira para o desenvolvimento socioeconómico do município, em particular a criação de 350 postos de trabalho no decurso da construção e a criação direta de 80 novos postos de trabalho durante a operação, levantam questões sobre a qualidade do emprego a gerar e, por outro lado, os turistas destes empreendimentos “tudo incluído” pouco ou nada contribuem para os negócios locais.

O novo empreendimento é um mau negócio para os madeirenses. Sendo um investimento privado envolve também investimento público. Ou seja, a privatização e betonização da nossa costa com o aval do PSD e do JPP.

A defesa do interesse público regional exige o ordenamento e a valorização do nosso litoral. É forçoso que se trave a privatização do litoral e a ocupação irresponsável do domínio público marítimo, e lamentamos que as autarquias e o GR sejam os primeiros a defender o seu contrário.