A neutralidade da internet em Portugal
No passado dia 14, a agência estatal norte-americana reguladora das telecomunicações (Federal Communications Commission) pôs fim à regulação da neutralidade de rede, um dos princípios basilares da internet, nos Estados Unidos. Mas o que é, afinal, a neutralidade de rede? E como é que Portugal se comporta na matéria?
A net neutrality, no original inglês, é a ideia de que as empresas fornecedoras de internet (fornecedores de fibra ótica ou telefone) não podem discriminar a informação que nela circula. Segundo este princípio, as operadoras de telecomunicações não podem, por iniciativa própria, prejudicar ou favorecer determinado website ou determinada app, podendo apenas cobrar um único preço pelo uso genérico da internet e a uma única velocidade, independentemente dos locais acedidos pelo cibernauta. Assim, a internet assume um estatuto de bem público que não pode ser cobrado pelo tipo de uso que lhe é dado. As operadoras não podem bloquear, abrandar ou cobrar mais por certo conteúdo.
A história da neutralidade de rede é recente, tal como tudo o que concerne a internet, de resto. O princípio só conheceu consagração legal pela primeira vez em 2010, no Chile, ao que se seguiram países como a Holanda, Brasil e EUA, durante a administração Obama. A questão não começou a ser discutida do nada, pois já havia antecedentes premonitórios dos perigos que a "autorregulação" nesta área representava.
Por exemplo, entre o final de 2013 e o início de 2014, a operadora norte-americana Comcast (a segunda maior empresa lobista nos EUA em 2013 e a maior telecom do mundo em lucros) abrandou intencionalmente a velocidade do site Netflix (que disponibiliza filmes e séries em streaming on-demand mediante o pagamento de uma mensalidade) ao ponto de ser impossível ver lá qualquer vídeo. Para evitar perder clientes e visualizações, a Netflix viu-se forçada a negociar com a Comcast a regularização da situação pagando à operadora.
Outro caso que exemplifica a obstrução dos meios de telecomunicação pelas operadoras na ausência de regulação é o da Verizon (outra das grandes operadoras telecom dos EUA e do mundo) que, em 2007, recusou o envio de SMS por uma associação pró-aborto norte-americana a subscritores voluntários desses mesmos SMS. A Verizon fê-lo alegando ter o direito de bloquear mensagens "controversas ou desagradáveis".
Os perigos que se colocam com a inexistência de neutralidade de rede são os representados nestes casos. Sem neutralidade de rede, o negócio na internet passa a ser monopólio das operadoras telecom e das grandes empresas do mundo da internet já bem estabelecidas no mercado. Se as operadoras puderem discriminar arbitrariamente os conteúdos da internet, favorecendo, por exemplo, os conteúdos de empresas que paguem rendas para tal, impossibilita-se o crescimento de potenciais concorrentes. Facebook,Netflix, Google, Amazon e outras empresas congéneres pagarão, porque podem, para que os seus sites e conteúdos sejam mais rápidos que os das outras redes sociais, motores de busca, sites de streaming ou sites de vendas. Há igualmente o perigo de restrição da liberdade de expressão quando se dá o poder à operadora de bloquear ou abrandar conteúdos com base em juízos morais subjetivos e à margem da lei.
As empresas que baseiam o seu negócio na internet (Facebook, Netflix, Google, Amazon, Twitter, sites de pornografia online, etc.) são, no entanto, grandes proponentes da neutralidade de rede. Estas empresas sabem que, sem regulação pró-neutralidade, as operadoras de telecom teriam o poder de chantageá-las e obrigá-las a pagar para manter a velocidade dos seus sites, como a Comcast fez à Netflix em 2014.
Os únicos e grandes opositores da neutralidade de rede são as operadoras de telecomunicações que prestam serviço de internet e os libertários de mercado para quem qualquer regulação estatal, por mínima que seja, é opressora da livre escolha - quando as verdadeiras e únicas forças opressoras da escolha dos clientes são as operadoras.
Este debate todo sucede de momento nos EUA, mas o que se passa em Portugal? O nosso país foi referido lá fora como um mau modelo em neutralidade de rede, primeiro num tweet de Ro Khanna, membro democrata da Câmara dos Representantes dos EUA, depois em várias publicações, a começar pelo jornal online Quartz. Todos assinalaram o facto de as operadoras portuguesas apresentarem tarifários móveis zero-rating e pacotes de "aditivos", táticas que contornam a regulação europeia já existente em matéria de neutralidade de rede,
O zero-rating consiste em oferecer tráfego ilimitado num número circunscrito de apps - incluindo muitas vezes apps da própria operadora que competem com outras idênticas - e cobrar o uso das restantes. Os pacotes de aditivos são pacotes de dados móveis extra para uso em conjuntos temáticos mas restritos de apps: por exemplo, o pacote de rede sociais pode incluir o Facebook, o Twitter e o Instagram, mas exlui as outras mais pequenas, condicionando o seu crescimento, pois aos clientes da operadora sair-lhes-á mais barato utilizar as do pacote. As principais operadoras em Portugal, MEO, NOS e Vodafone, apresentam todas tarifários deste género, como o WTF, Moche, Yorn X e os pacotes Smart Net. Não deveríamos seguir o exemplo de muitos outros países na luta contra o monopólio da internet e afastarmo-nos do caminho seguido por Trump e companhia nos EUA?
Artigo de Jaime Guilherme, estudante, para o esquerda.net