SOBRE A NATUREZA HUMANA...

Foi a natureza humana que criou a bela ideologia que estabelece o princípio que determina “a cada um de acordo com as suas necessidades; de cada um de acordo com as suas capacidades”. Ora bem, à luz deste ditame, pretende-se instituir um tipo de comportamento humano que visa a cooperação e a solidariedade entre todos os seres humanos, onde cada qual agirá no sentido de prover as suas necessidades ao mesmo tempo que utiliza as suas capacidades para o bem-comum e proveito da sociedade em que se insere. Confesso que este princípio sempre me fascinou, pois traduz o expoente máximo da Bondade que a ação de cada ser humano pode e deve evidenciar.
Contudo, este fascínio surge-me sempre acompanhado de uma reflexão sobre os comportamentos individuais adotados tanto por mim como pelas outras pessoas em diversos contextos. Na sequência desta reflexão, dou por mim a verificar (e a favor e contra mim também falo) que muitas vezes o mesmo indivíduo consegue protagonizar atitudes que o tornam tão próximo como distante da essência daquele postulado. Somos capazes de através do voluntariado, colocarmos as nossas capacidades ao dispor de terceiros (cumprindo com o princípio), bem como adquirir ou consumir determinados bens sem deles ter qualquer necessidade, só porque são disponibilizados momentaneamente a preços convidativos (contrariando o princípio).
Tendo por base este, sublinho, belo princípio, já assisti à defesa de que deveria ser instituído um valor fixo para a hora de trabalho de qualquer ser humano. Todos ganhariam em função do número de horas de trabalho e não em função das especificidades da tarefa realizada. Faz sentido, à luz do princípio, que assim seja, pois é suposto que se determinado indivíduo tem determinadas capacidades, então a utilização das mesmas será uma forma de se realizar pessoalmente. Em termos teóricos existe racionalidade neste modo de aplicação de tão belo princípio. No entanto questiono se em termos práticos esta atitude será exequível e se a mesma se coaduna com a nossa natureza? Será correto que o valor da hora de trabalho de um neurocirurgião seja equivalente à de um trabalhador indiferenciado? Não são igualmente as nossas necessidades tão díspares e diferenciadas no tempo? Tendo um indivíduo capacidade de adquirir competências na área da neurocirurgia, será que estará disposto para “perder” inúmeras horas na sua formação, sabendo que poderia disponibilizar horas de trabalho desempenhando outra função mais simples e auferindo o mesmo valor?
Estas interrogações mostram que a exequibilidade daquele princípio deixa muito a desejar. Mas é também esta mesma inexequibilidade prática que evidencia atitudes humanas que nos entristecem e mostram as contradições da nossa forma de ser e de estar: quando privados de um determinado direito somos capazes de unir forças e lutar pela sua conquista. Mas simultaneamente sendo esse direito um dado adquirido, muitos de nós abdicamos de o exercer e desprezamos essa possibilidade (ex: direito de voto); podemos pertencer a um povo que é protagonista de uma diáspora que se estende por vários continentes e simultaneamente nos perfilarmos na linha da frente contra a adoção de medidas por parte do nosso país que visam acolher refugiados provindos de zonas de guerra; somos muito lestos a reivindicar direitos, ignorando ou descurando propositadamente que o usufruto dos mesmos pressupõe o cumprimento de determinados deveres; gostamos emocional e afetivamente de ser valorizados e reconhecidos, fomentando por essa razão essa atitude de terceiros, mas muitas vezes não procedemos de igual modo para com quem nos preenche essa natural necessidade, assumindo egoisticamente que quem assim procede fá-lo por vontade própria sem necessidade nenhuma de ser igualmente reconhecido e valorizado.
Destas reflexões e questões, encontramos o equilíbrio entre a beleza do princípio e a essência da natureza humana através da procura contínua no dia-a-dia para através das palavras, pensamentos e ações estar mais próximo do nobre objetivo do postulado, tendo consciência dos erros e das imperfeições inerentes à própria natureza que nos rege e da qual não podemos (nem devemos?) fugir!