Cidades e Culturas: 3 princípios de ação política
O debate sobre políticas públicas de cultura está minado à partida por um conjunto de ideias feitas que olha para a política cultural como um nicho que diz respeito aos profissionais do setor. Como se, para a generalidade da população, a cultura dissesse pouco. Devemos por isso ter em conta que, enquanto Donald Trump choca o mundo com os seus tweets ou a sua incapacidade em dar um aperto de mão a uma mulher, decidiu acabar com os apoios públicos às artes e às humanidades nos Estados Unidos da América. E se esta decisão é tomada é porque talvez as políticas públicas para a cultura não sejam um pormenor mas sim centrais para a forma como olhamos para a nossa sociedade, para o nosso futuro e para a forma como queremos crescer.
Há uma coisa que sabemos. Sabemos que quando cresce o medo, quando cresce a intolerância, quando crescem muros à nossa volta, o centro é sempre o desconhecimento e ignorância. E só há uma forma de nós conhecermos as pessoas com quem partilhamos as nossas cidades; política cultural.
Acabar com a ignorância, promover o conhecimento não é uma tarefa estrita da escola pública. Não é uma tarefa estrita de um programa de animação cultural pontual aqui ou acolá. É uma tarefa concreta, determinante dos Estados sobre o conhecimento: olharmos uns para os outros.
As políticas públicas da cultura têm vindo a ser destruídas nos últimos anos em toda a Europa e não é por acaso. Elas têm seguido um projeto neoliberal de isolamento de cada um de nós, partindo laços comunitários privatizando, atacando direitos laborais, e limitando a capacidade de pessoas com origens culturais diferentes, com etnias diferentes, e gentes com tradições culturais diferentes de comunicarem e de se protegerem e aliarem, reconhecendo o que têm em comum: são os 99% que têm empobrecido.
O ataque às políticas públicas da cultura é, em boa medida, tanto o produto, como a causa da crise em que vivemos. Alimenta o caldo da crise. Alimenta a incapacidade de atuação contra a crise. Alimenta a quebra dos laços de solidariedade essenciais para uma resposta num país, numa europa, num mundo onde se quer crescimento do conhecimento.
É tão mais complicado que é para nós difícil de compreender que quando nós conseguimos em Portugal pelo menos o acordo de princípio que a qualificação da população é um dos desafios maiores do nosso país - porque, apesar do caminho extraordinário que estamos a fazer na qualificação, quando comparados com os restantes países europeus, Portugal é o que tem uma população menos qualificada em todas as gerações - é surpreendente não se falar no acesso à cultura.
Entendamo-nos, não existe qualificação sem cultura. O conhecimento não é uma lista de metas curriculares nem está encerrado nas escolas. E se as escolas não se devem encerrar nas metas curriculares também não se deve aceitar que a qualificação e o conhecimento sejam uma responsabilidade apenas da escola e não de todos nós enquanto sociedade. E aqui entram as políticas públicas para a cultura.
É no debate das políticas públicas de cultura que se debate e que se conquista o direito de todos nós ao conhecimento. A sabermos e a produzirmos. E esse é o debate determinante para o futuro. E é, julgo, um problema para este país que a Cultura continue de fora do acordo parar o empobrecimento deste país.
O orçamento de estado para a cultura não só é vergonhosamente baixo e parecido, se não pior, aos orçamentos do tempo PSD/CDS, como não se regista nenhuma evolução no pensamento do governo, nem no que diz respeito à forma como se encaram os equipamentos públicos de cultura, nem o tecido profissional da cultura, nem mesmo a saudável e democrática forma de distribuição dos poucos e escassos meios que existem para a Cultura.
Para o Bloco de Esquerda a política cultural não está esquecida. E faremos tudo, não apenas do ponto de vista da disputa local nas eleições autárquicas, mas também no debate no parlamento, no debate no seio da maioria, para que a cultura não fique de fora, e para que possa ter, pelo menos, um orçamento um pouco mais decente.
Ouvimos sistematicamente que Cultura está condenada à irrelevância porque as urgências são muitas e os meios poucos. E que, se formos pacientes, e a política cultural for obedientemente subordinada aos interesses turísticos, quando o Turismo estiver suficientemente desenvolvido (seja lá o que isso for) alguma coisa lhe há de calhar. O problema é este: o Turismo em Portugal aumentou 10% as suas receitas em 2016. O governo espera que o turismo possa crescer 4% ao ano nos próximos anos. E nenhum de nós tem dúvidas sobre o contributo positivo que o turismo está a dar para o crescimento da economia e para a criação de emprego no nosso país. Mas não basta ficarmos por estes números. Não só temos de saber qual é a qualidade do emprego, como temos seguramente de saber se este crescimento económico serve a quem, como serve e como é distribuído.
Se o turismo for apenas um negócio que está a crescer e não uma potencialidade económica aproveitada pelo país, a maior parte da população será prejudicada e não beneficiada pelo crescimento do turismo. E este é um debate que tem de ser feito. É um debate que é da Cultura e é de todas as áreas. De facto, o que está a acontecer é que os lucros que o turismo gera servem o crescimento de alguns negócios mas pesam muito sobre os custos sociais e de infraestruturas que não recebem uma distribuição equilibrada da riqueza gerado pelo turismo. Todas as pessoas compreendem: quando faltam transportes porque há mais turismo precisamos de compreender porque é que as receitas desse turismo não ajudam as cidades a ter receitas para melhores transportes públicos. Quando as cidades têm uma maior pressão para reparar as suas infraestruturas ou o seu património cultural porque têm uma utilização muito maior é preciso perguntar porque é que as receitas desse turismo não podem ajudar nesse esforço. E se as poucas receitas forem para as políticas culturais de promoção turística, a política da recuperação de fachada e da programação de eventos, descobriremos um dia que vivemos numa "Disneylândia" vazia de gente e de interesse.
O debate que conta hoje é o do direito à cidade, do espaço que habitamos, onde trabalhamos. A conquista a fazer é a dos direitos sociais, culturais e ambientais em que esse direito radica, e essa é conquistada à esquerda. A existência de políticas culturais depende dessa visão; não queremos cidades preparadas para quem vem de fora, mas sim cidades, que sendo atraentes para quem olha para elas de fora e que saibam receber bem quem a elas chega, sejam pensadas e habitadas por quem cá sempre viveu.
Estamos neste momento a meio de debate importante com o governo: o programa Revive, que concede a privados a exploração de monumentos nacionais. Sabemos bem que há património abandonado um pouco por todo o país. E que, por isso, as população encaram com naturalidade que se houver algum privado que tenha um projeto para esse património que o possa fazer. E esta é uma discussão difícil. Porque também não somos imobilistas e sabemos que nem tudo pode ficar como está. Mas convenhamos, há património que tem sentido ser recuperado e ter alguma exploração comercial, mas há património que não pode ser explorado seja sob que circunstância for, porque é incompatível com isso (veja-se o projeto inaceitável, e entretanto abandonado, de transformar o Forte de Peniche num hotel). E mesmo no património que seja compatível com exploração comercial, não se pode fechar o acesso das pessoas a esse património. Tem sempre de existir garantia de acesso público. Ninguém pode ficar dono de um património que é de todos. E por isso, neste apetite voraz de transformar o nosso país em mero recetáculo de turistas, e não num país onde todos vivemos e todos desfrutamos da memória do que somos coletivamente, é preciso afirmar que projetos como o Revive só podem ir para a frente com um intenso debate público sobre a reabilitação e os planos de uso, participado em cada local pelas populações que são as donas desse património e com imprescindível parecer técnico de quem investiga e conhece o património. Precisamos dessa transparência. E vamos bater-nos por ela.
Há três linhas fundamentais que marcam um projeto de políticas culturais para o espaço partilhado (o espaço coletivo, em comum) que é o espaço concelhio.
O primeiro é que a Cultura tem de ser memória e ação coletiva. Ou seja, que o património tem de ser interpretado, que as pessoas têm de perceber o que têm ali ao lado, que onde existe uma parte da nossa memória tem de haver uma descodificação para que todas as pessoas possam perceber porque razão aquilo foi feito, o que significa, porque deve ser preservado, que batalhas da nossa memória estão ali, que culturas se cruzaram.
A Cultura tem de ser memória coletiva para ser também uma ação coletiva. Porque um povo que não conhece a sua memória é um povo colonizado. E verdadeiramente é isso que tem acontecido. Nós somos dos países da Europa com maior quota da indústria de entretenimento dos Estados Unidos da América. Ou seja, somos dos países que menos conhece o seu passado e que menos conhece a sua criação artística atual. E portanto não sabemos aquilo de que somos capazes. Não sabemos os passos que já demos, que caminhos utilizámos. E nós temos de conhecer os tropeções que já demos para poder construir um futuro coletivo. E isso é de todos e de todas. Não é de um grupo de especialistas. Em cada sítio tem de haver capacidade para toda a gente perceber o que está em causa.
Recuperar o património do "fachadismo", que é bom para fotografia de turista mas que não tem capacidade para que as pessoas o conheçam, é próprio de um país colonizado. E um país que se abre a todo o mundo é um país em que seguramente quem cá vive tem de saber o que cá tem. E essa é uma primeira linha de política do Bloco: Cultura tem de ser Memória e Ação.
Segundo ponto: Cultura é Serviço Público. Tem de ficar claro que Cultura não é uma atividade de umas quantas pessoas bem intencionadas que fazem umas coisas de vez em quando. O trabalho bibliotecário é um trabalho técnico, especializado, importante para sabermos quem somos. A produção artística depende de profissionais que sabem o que estão a fazer. Nós, que estamos habituado a ver o que é feito com a melhor tecnologia que nos entra pela televisão adentro, não queremos ter também a produção nacional com a técnica, o conhecimento que o país tem? Há quarenta anos, quase não havia formação nesta área. Hoje, temos gerações qualificadas nas mais variadas áreas culturais, do património à criação artística. E essa capacidade tem de ser usufruto do país.
Se levamos a Cultura a sério temos de fazer com que a Cultura seja um serviço público, com regras, com combate à precariedade, com capacidade de independência. Nós bem sabemos que os poderes políticos sempre gostaram de usar a cultura como um campo de todas as manipulações, e como o campo de todas as dependências. É tempo mudar.
Chegamos por isso ao terceiro ponto: se a Cultura é coletiva e Serviço Público, a Cultura é também Democracia. E a Democracia exige clareza política: a Cultura não é o espaço da política do príncipe que chama o artista e diz “agora podes fazer o que queres porque eu decidi que podes fazer o que queres.” A política do Príncipe é a política que humilha, e é a política que faz da Cultura algo manietado, que não é democrático e que fica dependente do poder do momento. E portanto se há coisa que devemos ser claros é que o Bloco de Esquerda não quer mandar em nada na Cultura que é feita. Quer criar os serviços públicos e os concursos com princípios de clareza e transparência para que toda a gente tenha acesso aos meios necessários para fazer aquilo que tem sentido para a sua comunidade. Não é a função da política decidir o que é feito na Cultura, mas sim criar os meios para que se possa fazer Cultura.
Se a Cultura é um Serviço público que não dispensa os profissionais que a fazem, a cultura é muito mais do que os profissionais que a fazem. Toda a gente tem de ter o direito, tem de ter o acesso à Cultura. O acesso à cultura é fruir mas também fazer. Não há por isso um grupo de iluminados que decide o que é Cultura. Um projeto de cidade que leva a sério a Cultura é aquele onde a comunidade tem capacidade de propor usos não pensados antes para os espaços da cidade. É aquele onde há espaço para respeitar o associativismo que se organiza. É aquela que sabe que toda a gente tem o direito a pisar o tapete vermelho do Teatro Nacional ou do Museu Nacional. Esta ideia está no oposto da política do programador cultural iluminado. É um projeto de democracia.
Só é democrática a cidade onde os seus espaços são vividos por todos, e onde o espaço público é encarado como um espaço de cultura onde se cruzam pessoas muito diferentes, com origens diferentes, que se conhecem e dão a conhecer a sua memória numa ação coletiva. Nas políticas públicas de cultura desenhamos a nossa liberdade.
Artigo de opinião publicado em Esquerda.net