Morreu uma mulher valente e feminista

Prefiro falar desta mulher do que dos cargos institucionais a que concorreu ou que conquistou, porque esses passaram, mas esta mulher foi realmente a que ficou.

Conheci a Conceição em 1975 quando ela veio de França onde foi emigrante antes do 25 de Abril de 1974. Era 14 anos mais velha do que eu e eu sempre a vi como alguém que me inspirava um grande respeito, sobretudo, quando ela contava como foi ser empregada doméstica num País estrangeiro e depois chegar a professora. Eu que desde pequena queria ter sido professora via nela algo de inspirador e valente.

Ela vinha com uma grande vontade de organizar o sindicato das empregadas domésticas. Fez muitos contactos e reuniões. Passou por situações incríveis mas os Lobys foram tão fortes que afastaram as mulheres desse tipo de organização. Mais tarde ela foi uma das grandes impulsionadoras da existência do Sindicato dos Professores da Madeira, e sua dirigente representante na FENEPROF. Acho que nunca lhe foi prestada a devida homenagem por este trabalho.

Ajudou a fundar o Departamento de Mulheres da USAM, ( União dos Sindicatos da Madeira) em 1979 tendo sido eleita sua dirigente com outras companheiras de luta da altura onde me incluo, a Assunção Bacanhim e a Clarisse Canha. Este Departamento teve um papel fundamental na negociação com o Governo Regional em coisas como o planeamento familiar, a escola a tempo inteiro, a rede de creches e jardins de infância, lares para acolher pessoas sós e doentes, etc...Sem dúvida que estas conquistas, que hoje são tudo questões adquiridas, foram alcançadas com muita luta, inteligência e negociação e a Conceição fez parte delas.

Um dia num Projecto ligado a “Memórias e Feminismos” eu fiz parte do grupo que fez uma entrevista com a Conceição, a sua história de vida era tão vasta e tão multifacetada, que lhe demos a ideia de escrever um livro com a história da sua vida que mais tarde ela editou em 2017.

A Conceição também tinha outra característica que era a de fazer poemas e quadras. Há muitas lutas importantes que as mulheres realizaram na Madeira que ela cantou-as em versos que foram incluídos em várias obras já editadas por ela e por mim. Conseguimos perceber através desses versos a sua sensibilidade para com, e quem, a rodeava e a preocupava. Por vezes participava nas manifestações e reuniões e dias mais tarde voltava com os versos que tinha feito, que têm um valor histórico porque corresponderam a muitos acontecimentos reais.

Era também uma mulher muito alegre adorava cantar e dançar. Fazia fantoches todos feitos à mão para fazer pequenos teatrinhos para as crianças. Quando organizávamos passeios e eventos recreativos ela tinha sempre ideias e uma grande preocupação que era recolher fundos, nem que fosse através de rifa enroladas. Tinha sempre uma posição de humildade perante o dinheiro e sei que ajudou muitas gente sempre que podia.

Desde a fundação da UMAR que ela fez parte da sua direção nacional a representar a Madeira. Eu e as outras companheiras tínhamos muita actividade sindical e ela era a nossa representante em tudo o que fosse falar da mulher. Recordo um debate televisivo difícil, que foi sobre a legalização da prostituição, onde ela, de forma didática e muito serena, explicou a posição da UMAR, e conseguiu que a escutassem com respeito, sobre um tema que ainda hoje é muito difícil. Era uma mulher corajosa e acompanhou a um telejornal, uma mulher vitima de violência doméstica, de cara tapada, tendo sido a primeira vez que isso aconteceu na Madeira. Ficou amiga dela, toda a vida.

A Conceição tinha uma forma de ser um pouco rude e às vezes dura. Quando achava que a razão estava do seu lado não movia nada e fechava-se nas suas ideias mas isso nunca a impediu de participar e intervir nem que fosse através das cartas do leitor do DN Madeira onde era assídua e firme a defender as suas posições mesmo que fossem contrárias às da maioria das pessoas. Ela acreditava que era possível um mundo novo. Ela acreditava nas ideias do feminismo para alcançar esse mundo e sempre as defendeu de forma clara e directa.

A Conceição combateu o sistema capitalista por o considerar um sugador do suor de quem trabalha. Combateu os “poderosos” os donos disto tudo porque queria um mundo diferente e mais feliz. Tenho a certeza que as suas ideias irão ser seguidas por muitas feministas que se têm juntado à nossa causa e que desta forma ela nunca morrerá.

Prefiro falar desta mulher do que dos cargos institucionais a que concorreu ou que conquistou, porque esses passaram, mas esta mulher foi realmente a que ficou.

 

(publicado como carta do leitor em 12/06/2020 no Diário de Notícias da Madeira)